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O cânon e o sentido do Antigo Testamento

C) O CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO

O Antigo Testamento não é a totalidade da literatura produzida pelo povo hebreu. É o resultado de uma seleção de livros aos quais se reconhece autoridade e que são, por isso, chamados canônicos (a palavra kanôn em grego significa "regra"). 

D) O TEXTO DO ANTIGO TESTAMENTO E SUA TRANSMISSÃO

I - A língua do Antigo Testamento

Os livros do Antigo Testamento foram escritos essencialmente em hebraico. Essa língua semítica - aparentada, portanto, com o árabe e o babilônico - é bastante diferente das línguas européias. Para compreender certas notas, talvez seja útil conhecer algumas de suas características, que são as mesmas para o aramaico, língua de alguns textos do Antigo Testamento.

- A maior parte das palavras (verbos e substantivos, por exemplo) é formada a partir de "raízes" caracterizadas por consoantes (habitualmente três, o único elemento a ser escrito, ao menos no princípio). As vogais (variáveis) e um certo número de prefixos e sufixos servem para indicar as funções gramaticais: gênero e número dos nomes, modos dos verbos etc. Assim, a raiz brk, que exprime a idéia de bênção, pode tomar formas tais como: barek = abençoar, berak = ele abençoou, beraku = eles abençoaram, yebarek = ele abençoará, baruk = abençoado, beruká = abençoada, beraká = bênção.

Como o contexto é que determina o sentido das palavras, geralmente é fácil constatar na leitura quais vogais devem figurar em çada palavra: por isso, essa escrita abreviada (sem vogais) foi suficiente para o hebraico durante o tempo em que permaneceu uma língua viva. Quando deixou de ser falado pelo povo, foram criados diversos sistemas para a notação das vogais.

- Nos verbos, o hebraico exprime sobretudo o aspecto da ação: as noções temporais de passado, presente,futuro nas quais se desenrola a ação são indicadas pelo contexto- A forma verbal descreve a ação como realizada ou não-realizada. A ação realizada corresponde geralmente ao passado (perfeito ou mais-que-perfeito), mas pode também ter valor para o futuro, se se olhar a ação em sua totalidade como uma realidade acabada. A ação não-realizada vale sobretudo para o futuro, mas também para o presente e o passado, quando a ação continua ou se repete (imperfeito). De fato, só o contexto permite saber se a ação está no passado ou no futuro, mas o próprio sentido do contexto nem sempre é evidente, o que explica numerosas divergências entre as diversas traduções da Bíblia.

- Como toda língua, o hebraico possui certo número de expressões idiomáticas: para falar do santo Templo de Deus, o hebraico diz "o Templo de sua santidade"; para descrever alguém que empreende uma viagem, o hebraico diz "levantou-se e foi"; para apresentar-se diante de Deus o hebraico diz "vir ante a face de Deus".

As primeiras traduções gregas da Bíblia transpuseram numerosas expressões desse gênero, bem como outros hebraísmos. Desse modo criaram uma língua particular: o grego bíblico, utilizado no Antigo Testamento grego e no Novo Testamento. A estrutura é quase a mesma do grego que se falava em toda a bacia do Mediterrâneo entre o século II a.C. e o século I de nossa era; mas muitas palavras tomaram um sentido especial, e esse idioma utiliza figuras próprias ao hebraico ou aramaico.

II - A transmissão do texto

I. Os livros transmitidos em hebraico (ou em aramaico)

a) O texro masorético. Os livros que o povo judeu, no fim do século I d.C., considerou comc livros santos (Bíblia judaica, Antigo Testamento dos protestantes, livros prnrocanônicos do Antigo Testamento para a Igreja católica) foram conservados em sua língua original (aramaico para uma grande parte de Daniel e algumas passagens de Esdras, hebraico para todo o resto).

Chama-se texto masorético a forma textual oficial definitivamente fixada no judaísmo por volta do século X d.C., época na qual floresciam em Tiberíades, na família dos Ben Asher, os mais célebres masoretas (= transmissores e fixadores da tradição textual). O mais antigo manuscrito "masorético" que possuímos foi copiado entre 820-850 d.C. e contém apenas o Pentateuco. O mais antigo manuscrito completo, o códice de Alepo - hoje infelizmente amputado - foi copiado nos primeiros anos do século X d.C. Nossas Bíblias hebraicas modernas reproduzem esse texto tal como foi copiado no manuscrito B 19a (L), de Leningrado (c. 1008).

O fato de a escrita hebraica anotar de modo preciso apenas as consoantes tornou ambíguos certos textos btblicos. Por volta do século VII d.C., encontrou-se um meio preciso para anotar as vogais e para indicar a vocalização tradicional das frases e membros de frases, graças a um sistema complexo de pontos e de traços que acompanham o texto consonântico. Assim se fixou por escrito uma tradição de leitura e de exegese desenvolvida no judaísmo no curso do primeiro milênio de nossa era e da qual os rargumin (traduções aramaicas da Bíblia hebraica) são as testemunhas fiéis. Resquícios de algumas traduções gregas realizadas sob a influëncia do rabinato no curso dos dois primeiros séculos (as de Teodocião, de Áquila e de Símaco) permitem remontar ainda mais longe na história desta tradição de exegese.

b) O texto protomasorético e as formas textuais não-masorélicas. O texto consonântico que serviu de base para a atividade dos masoretas (= texto pratomasorérico) tinha já suplantado no judaísmo todas as outras formas textuais rivais pelo fim do sc:culo I d.C.

A partir de I947, foram descobertas, às margens do mar Morto, em grutas ao redor da ruína de khirbet Qumran', alguns rolos de livros bíblicos quase completos e de milhares de fragmentos abandonados no século I de nossa época. Isso permitiu constatar que, na época de Jesus, circulavam na Palestina certo número de livros biblicos em formas textuais por vezes divergentes do texto protomasorético. Conheciam-se já, antes da descoberta dos manuscritos de Qumran e do Deserto de Judá, algumas formas não-masoréticas do texto do Antigo Testamento: por exemplo, aquele que a comunidade dos samaritanns conservou para o Pentateuco, ou então o que serviu de base para a antiga tradução grega dos Setenta (Septuaginta). Essas duas últimas formas textuais, apesar de conservadas em manuscritos mais recentes que os manuscritos do Deserto de Judá, remontam aos três últimos séculos antes de Cristo.

Em todas essas formas do texto pré-masorético podemos encontrar por vezes um texto mais claro e inteligível do que o masorético. Daí a tentação de muitos exegetas, sobretudo entre 1850 e 1950, de a elas apelar para corrigir o texto masorético nos trechos considerados alterados.

c) Alterações textuais. É certo que determinado número de alterações diferenciam o texto protomasorético do texto original.

- Por exemplo, o olho do copista saltou de uma palavra a outra semelhante, situada algumas linhas abaixo, nmitiudo tudo aquilo que as separava.

- Do mesmo modo, certas letras, sobretudo quando mal-escritas, muitas vezes foram mal-lidas e mal-reproduzidas, pelo copista seguinte.

- Ou então um escriba inseriu no texto que ele copiava, e às vezes num lugar inadequado, uma ou várias palavras que encontrara à margem: termos esquecidos, variantes, glosas explicativas, anotações etc.

- Ou ainda alguns escribas piedosos pretenderam melhorar por meio de correções teológicas uma u outra expressão que Ihes parécesse suscetível de interpretação doutrinalmente perigosa.

Algumas dessas alterações podem ser detectadas e corrigidas graças às formas textuais não-masoréticas, quando estas se verificam isentas de aiteração. 

d) Crítica textual. Que forma de texto escolher? Noutras palavras, como chegar a um texto hebraico o mais próximo possível do original? Alguns críticos não hesitam em "corrigir" o texto masorético cada vez que ele não Ihes agrada, seja por motivo literário, seja por motivo teológico. Por reação, outros se atêm ao texto masorético, mas quando ele é manifestamente insustentável, procuram encontrar numa ou noutra das versões antigas uma variante que lhes pareça preferível. Esses métodos não são científicos, sobretudo o primeiro. São perigosamente subjetivos.

Atualmente, um melhor conhecimento da exegese targúmica e das literaturas antigas do Oriente Próximo permite explicar certas passagens até hoje obscuras.

Mas a solução verdadeiramente científica consistiria em fazer com a Bíblia hebraica o que se faz com o Novo Testamento e com todas as obras da Antiguidade: um estudo bastante minucioso do conjunto das variantes, estabelecendo "a árvore genealógica" dos testemunhos que possuímos - texto masorético, múltiplos textos de Qumran, Pentateuco samaritano, versões gregas da Septuaginta (com suas três revisões sucessivas), da Quinta (de Orígenes), de Áquila, de Símaco, de Teodocião, versões aramaicas dos targumin, versões siríacas peshitto, filoxeniana, siro-hexaplar, harqleana, versões latinas antigas e Vulgata de Jerônimo, versões coptas, armênias etc. - e assim, sem nenhuma conjetura subjetiva, restabelecer o arquétipo à base de todas as testemunhas. Geralmente esse arquétipo remonta ao século IV a.C. Em alguns casos privilegiados (certas passagens das Crônicas), pode-se provar que o arquétipo assim obtido é o próprio original. Quase sempre o arquétipo está separado do original por um período mais ou menos longo, e então se está obrigado, para passar do arquétipo ao original, a recorrer a algumas conjeturas, com a aplicação prudente de princípios críticos bem estabelecidos.

Infelizmente, os textos de Qumran ainda não estão todos publicados, e o trabalho crítico exige tanta competência e pesquisa que ele levará ainda várias décadas. Por isso, para evitar as fantasias de correções falaciosas, os responsáveis pela Bíblia - Tradução Ecumênica decidiram séguir, o mais perto possível, o texto masorético, esclarecendo-o pelo trabalho dos grandes exegetas judaicos da Idade Média: Rashi, Ibn-Ezra, Qimhi etc.

2. Os livros transmitidos em grego. Fiel nesse ponto mais a Orígenes do que a Jerônimo, a presente tradução não quis manter o apego à tradição rabínica a ponto de eliminar os livros que, desde a fundação, as Igrejas herdaram do judaísmo de língua grega (classificados como deuterocanônicos na tradição católica). Pelo fato de os judeus de língua hebraica não os terem conservado na lista oficial de seus livros santos e de o judaísmo ter cessado de assegurar-Ihes a tradição textual no curso do século I de nossa era, eles nos oferecem tradições textuais geralmente menos unificadas que, por vezes, perderam o enraizamento semítico de onde a maior parte deles surgira. 

                                   O SENTIDO DO ANTIGO TESTAMENTO

1. Para os judeus. Para ler a Bíblia (= "Lei escrita"), o judaísmo elaborou sua própria tradição interpretativa durante o período rabínico clássico, do século II a.C. ao século VIII da nossa era. Primeiramente "Lei oral" ou "tradição dos antigos" (porque transmitida de mestre a discípulo sem a mediação escrita), essa tradição foi codificada e posta por escrito na Mishuá (que, com o seu comentário, a Guemará, forma o Talmud) e nas diversas coletâneas midráshicas. Ela se desenvolve essencialmente sobre dois pontos: a interpretação livre e homilética, visando alimentar a reflexão religiosa (Hagadá) e a definição das regras de conduta cotidiana (Halaká). "Lei escrita" e "Lei oral", texto de referência e interpretação ininterrupta, constituem a tradição reügiosa viva do judaísmo.

Deixemos a palavra a dois autores judeus contemporâneos:

"Se existe uma coisa no mundo que mereça o atributo de divino, é a Bíblia. Há inúmeros livros sobre Deus. A Bíblia é o livro de Deus. Revelando o amor de Deus pelo homem; ela nos abriu os olhos, a fim de que pudéssemos ver que aquilo que tem um sentido para a humanidade é, ao mesmo tempo, o que é sagrado para Deus. Ela mostra como a vida de um indivíduo pode se tornar sagrada, e sobretudo, a vida de uma nação. Oferece sempre uma promessa às almas honestas quando perdem o ânimo, enquanto os que a abandonam vão de encontro ao desastre" (A. Heschel, Dieu en quête de l'homme, Paris, Seuil, 1968, p. 263 [port: Deus em husca do homem, São Paulo, Paulinas, 1975]).

"A teologia judaica, ligando o universalismo da criação ao particularismo de Israel, confirma aquilo que toda a Bíblia ensina, a saber, que Deus se revela ao homem e que Israel está no centro da humanidade criada à imagem espiritual de Deus:`Vós sereis para mim um povo de eleição entre todos os povos, um reino de sacerdotes, uma nação santa' (Ex 19,5-6); `Santos vos tornareis, pois Eu sou Santo, Eu, o Senhor, vosso Deus' (Lv 19,2). "Compreende-se então que o judaísmo conceda à Bíblia o lugar mais eminente no ensinamento sinagogal, visto que ela é o `Livro da Aliança' que une Deus a seu povo (Ex 24,7), a carta que, em Abraão, tornou todo Israel bênção para todas as nações (Gn 12,3), de sorte que `a terra inteira reconheça um dia.e proclame a Realeza e a Unidade de Deus' (Zc 14,9)" (A. Zaoui, Catholiyues, juifs, orthodoxes, prntestants lisent la Bihle Introductions ìt la Bible, t. I, Paris, Cerf, 1970, p 76).

2. Para os cristãos. O Antigo Testamento só é antigo em relação ao Novo, isto é, a nova aliança instaurada por Jesus Cristo. Mas não se deve exagerar a diferença entre ambos, como se a antiga aliança e a literatura que dela dá testemunho tivessem caducado. Essa visão das coisas, que foi a de Marcião no século II, reaparece periodicamente na história da teologia. Ora, ela atinge mortalmente o próprio Novo Testamento.

a) O Antigo Testamento foi a úniça Bíblia de Jesus e da Igreja primitiva. Como livro da educação judaica, de algum modo, moldou a alma de Jesus. Este assumiu os valores do AT como fundamentos do seu evangelho: não veio para "ab-rogar" a Lei e os profetas, mas "para cumpri-los". Cumpri-los eta primeiramente levá-los a um ponto de perfeição no qual o sentido primitivo do; textos se superasse a si mesmo, para traduzir en sua plenitude o mistério do Reino de Deus. Cumprí-los era também fazer entrar na experiência humana o conteúdo real das promessas que pola rizavam a esperança de Israel. Era desvendar o sentido definitivo de uma história ligada a uma educação espiritual, mostrando sua relação com o mistério da salvação, consumado pela crvz e ressurreição de Jesus. Era enfim dar à oração que aí se expressava uma rìqueza de conteúdo que ultrapassasse os seus limites provisórios. Sob todos estes aspectos. Jesus cumpriu em sua pessoa as Escrituras que estruturavam a fé de Israel.

b) Por isso a Igreja apostólica encontrou nas Escrituras o ponto de partida necessário para anunciar Jesus Cristo. À luz da Páscoa, ela não somente rememorou os feitos e gestos de Jesus, a fim de compreender o seu sentido profundo; também releu todos os textos antigos que the recordavam a históriá preparatória, com suas peripécias contrastantes, suas instituições provisórias, seus sucessos e fracassos, seus pecadores e santos. Não se encontravam esboçados, anunciados e prefigurados já no Prímeiro Testamento a mensagem de Jesus, sua missão redentora, a constituição e o mandato da Igreja? Por isso os livros do Novo Testamento, sem perder de vista as lições positivas contidas nos preceitos do Antigo, babitualmente reinterpretam os textos do AT para fazer emergir neles a presença antecipada do Evangelho. Dessa forma o Antigo Testamento pôde tornar-se a Bíblia Cristã, sem nada perder de sua consistência própria, antes adquirindo o estatuto de Escritura "consumada".

c) Ta! é a perspectiva na qual a primitiva teologia cristã foi construída, para explicitar o conteúdo do Evangelho e explicar quem é Jesus. Messias judeu e Filho de Deus. As imagens de Adão e de Moisës, de Davíd e do Servo sofredor, do Emanuel e do Filho do Homem vindo sobre as nuvens permitiram elaborar a linguagem fundamental da fé cristã. Certamente a linguagem do Novo Testamento apresenta diversidade notável. Mas embora não despreze os recursos do universo cultural no qual víviam seus autores e leitores, foi tecído com as palavras e as frases da Escritura, as quais lhe conferem densidade. A relação entre Deus e seu povo, manífestação de sua graça e fidelidade, tomou assim sua verdadeira dimensão: tudo aconteceu a nossos pais "para servir de exemplo" e Deus quis que isso fosse consignado por escrito "para nos instruir, a nós a quem coube o fim dos tempos" ( 1 Cor 10,1 I ).

O Novo Testamento, por conseguinte, pôs as bases de uma leitura cristã do Antigo. Descoberta do Espírito sob o véu da letra. Revelação do sentido defïnitivo sob invólucros provisórios. Tal trabalho não se realízou, no decorrer dos séculos da história cristã, sem suscitar problemas complexos, que cada época formulou de modo novo. Herdeiros dessa tradição ínterpretativa, sempre orientada por uma vísão de fé, vemos esses problemas se apresentarem a nós. Que pode haver de extraordinário nisso, uma vez que a Palavra de Deus veio até nós no meio de uma história verdadeiramente humana e sob a forma de palavras verdadeiramente humanas? Para além dessa história e desses textos, a Igreja se esforça por perceber a Palavra de Deus da qual é portadora, a fím de lhe responder na "obediência da fé". Por isso é importante que a Escrítura ínteira se tenha transformado no tesouro comum das lgrejas, divididas por tantos dramas históricos. A obediência comum à única Palavra de Deus não é o índicio mais seguro de uma unidade que se procura construir? É vivendo da mensagem bíblica, do modo como dela viveram os apóstolos, que os cristãos de hoje reencontrarão o caminho da reunificação em Jesus Cristo.

 

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